SIMONE DE BEAUVOIRMal-entendido em Moscovo

Macha, acima dos dez graus, achava que estava calor; mas Nicole tremia de frio no seu vestido de seda. Além disso, passar a noite toda num banco, pareceríamos vítimas de um sinistro.
- Tenho frio – disse.
- Podemos ir ao bar do Nacional – disse Macha.
- Boa ideia.
O bar estava aberto até as duas da manhã. Pagava--se em moeda estrangeira, podia-se consumir whisky, cigarros americanos; tinha-o mencionado a André e a Macha no dia em que lá almoçaram, mas eles não responderam. Contudo, Macha reparara nisso e lembrara-se na altura certa. Levantaram-se.
- É longe?
- Meia hora a pé. Talvez encontremos um táxi – disse Macha.
Nicole desejava um táxi, doíam-lhe as pernas, os pés. Normalmente, era fácil encontrá-los, pois o seu úmero duplicara desde 63. Naquela noite, passaram muitos por eles, a luzinha verde acesa com ar promissor; mas quando lhes faziam sinal, aceleravam impiedosamente: não podiam parar naquelas grandes avenidas. A paragem mais próxima era bastante longe e talvez houvesse uma longa fila e nenhum carro. Caminhar, sentar-se nos bancos, duro regime. Para os seus habitantes, Moscovo talvez fosse excelente; Macha não queria viver noutro lugar, sobretudo em Paris (o que não deixava de ser surpreendente). Mas para os estrangeiros, que austeridade! «Talvez tenha ficado muito mais velha nestes três anos», pensou Nicole. «Cada vez suporto menos o desconforto. E só vai piorar.» «Estamos na flor da idade», dizia André. Que flor estranha: cardos.
- Estou morta de cansaço – disse.
- Já chegamos.
- É horrível envelhecer.
   Macha dera-lhe o braço. - Vamos lá! São ambos tão jovens.
   Diziam-lhe muitas vezes isso: tem um ar jovem, é jovem. Cumprimento ambíguo que anuncia penosos amanhãs. Manter a vitalidade, a alegria, a presença de espírito, e manter-se jovem. Logo a quota-parte da velhice é a rotina, a morosidade, a preguiça.      Dizem: a velhice existe, não é nada; ou então, é muito bonita, muito comovente; mas quando lá chegam, mascaram-na pudicamente com palavrinhas mansas. Macha disse: são jovens mas dera o braço a Nicole. No fundo, era por sua causa que Nicole, desde que chegara, sentia a idade pesar-lhe tanto. Apercebera-se de que a imagem que tinha de si própria ficara nos quarenta anos: reconhecia-se naquela jovem e robusta mulher; além disso, Macha tinha muita experiencia e autoridade, era tão madura quanto Nicole: eram parecidas. E subitamente, um gesto, uma entoação na voz, uma amabilidade recordavam-lhe que tinham vinte anos de diferença – que ela tinha sessenta anos.
- Que confusão! - disse André.

O bar estava cheio de fumo e muito barulhento. Apenas uma mesa livre, entalada entre uns jovens americanos de riso sonoro e uns franceses de meia-idade que diziam piadas em voz alta. Uns alemães ocidentais – apenas as moedas ocidentais eram aceites – cantavam em coro. Passava um disco de jazz que mal se conseguia ouvir. Mas era agradável reencontrar o sabor do whisky, o sabor das noites de Paris com André, com Philippe. (Devia lá estar calor; ter-se-iam sentado numa esplanada da em Montparnasse.)
- Gostas de sentir-te de novo no Ocidente?
- Por algum tempo, sim.
Ele cortara as amarras. Não escrevera a ninguém umas meras palavrinhas rabiscadas na última carta de Nicole a Philippe. Sorria de manhã quando ela comprava obstinadamente um exemplar do Humanité de há vários dias. Era sempre assim nas viagens. Esquecia facilmente Paris, as suas raízes não eram de lá.
- O júbilo das delegações! É pior do que o casamento do barbeiro! - disse ele com ar contrafeito.
- Queres ir embora?
- Claro que não.
Ficaram para fazer a vontade a Nicole, mas ele não queria lá voltar mais, nem mesmo Macha se sentia ali à vontade. (Não havia russos, exceto duas mulheres r to maquilhadas que visivelmente andavam à procura de fortuna.) No entanto, era um local agradável, aberto – pelo menos entreaberto – ao mundo. Um negro alto de camisa vermelha começou a dançar sozinho e as pessoas acompanhavam o ritmo com palmas.
- Dança muitíssimo bem - disse Nicole.
- Sim.
André parecia ausente. Andava com um tique há alguns dias, carregava com o dedo na bochecha por cima da gengiva. Ela disse-lhe com alguma impaciência:
- Esta a doer-te? Vai ao dentista.
- Não me dói.
Então porque estas sempre a carregar na bochecha?
- Estou a confirmar que não me dói.
Houve uma época em que tomava o pulso vinte vezes por dia, o olhar fixo nos ponteiros do relógio. Pequenas manias sem importância, mas que não deixam de ser um sinal. De quê? de que a vida está a definhar, de que a senilidade está à espreita. Senilidade. Sabia de cor as definições do Larousse cuja assimetria a chocara. Juvenilidade: carácter do que é juvenil. Senilidade: enfraquecimento do corpo e do espírito decorrente da velhice.

(…)

Nicole estava sentada à frente de um copo de whis­ky; a boca entreaberta, o olhar fixo.
André teria gostado de abraçá-la, beijá-la. Mas, assim que abrisse a boca, o rosto dela iria alterar-se, iria crispar-se. Aproximou-se e sorriu timidamente. O rosto alterou-se, crispou-se.
- O que estão aqui a fazer?
Tinha estado a beber; as palavras entaramelavam-se-lhe na boca.
- Viemos buscar-te de carro.
Pousou levemente a mão no ombro dela:
- Vá lá, vamos beber um copo juntos. Fazer as pazes.
- Não me apetece. Voltarei quando me apetecer.
- Esperamos por ti – disse ele.
- Não. Voltarei a pé. Sozinha. Acho incrível virem aqui buscar-me.
- Deixe-me levá-la agora – disse Macha. - Por fa­vor, faça-o por mim. Caso contrário, ficaremos à espera até às duas da manhã e amanhã tenho de acordar cedo.
Nicole hesitou:
- Está bem. Mas faço-o por si. Apenas por si – disse.
           A luz penetrava pelas suas pálpebras. Permaneceu de olhos fechados. Sentia a cabeça pesada e uma tristeza profunda. Porque se tinha embriagado? Estava envergonhada. Mal chegara, atirara a roupa pelo chão e desfalecera. Tinha mergulhado nas negras profundezas; eram viscosas e sufocantes, como o mazute, e naquela manhã ainda se sentia a emergir delas. Abriu os olhos. Ele estava sentado num sofá aos pés da cama, olhava para ela a sorrir:
- Minha pequenina, não vamos continuar assim.

          Era ele subitamente, reconhecia-o; passado, presente: uma única imagem. Mas havia ainda aquela lâmina de metal no seu peito. Os seus lábios estremeciam. Mostrar mais firmeza, mergulhar a pique, afundar-se nas profundezas da noite. Ou tentar agarrar aquela mão estendida. Ele falava num tom sóbrio, sereno; ela gostava da sua voz. «Ninguém pode estar seguro da sua memória», dizia ele. Talvez não lhe tivesse falado: mas estava de boa-fé quando insistia tê-lo feito. Também ela já não tinha certeza de nada. Fez um esforço:
- Se calhar falaste comigo e eu esqueci-me. Ficaria surpreendida, mas não e impossível.
- Em todo o caso, não há nenhum motivo para estarmos zangados.
         Ela esforçou-se por sorrir:
- Nenhum – disse.
Ele aproximou-se dela, abraçou-a, beijou-a na têmpora. Ela agarrou-se a ele, encostou o rosto ao seu ombro e desatou a chorar. Que morna voluptuosidade, as lágrimas escorrendo pelo seu rosto. Que alívio! E tão cansativo detestar alguém que amamos. Ele murmurava as antigas palavras: «Minha pequenina, minha querida...»
- Fui estúpida.
- E eu pouco atento. Devia ter voltado a falar contigo. Devia ter percebido que te aborrecias.
- Oh! Não me aborreço assim tanto. Estava a exagerar. 

Para voltar a esta obra clique aqui


Para regressar ao AMOR PELOS LIVROS clique aqui