PISO 3 QUARTO 313 - Fernando Correia

    A doença de Alzheimer

A doença descoberta, ou assinalada pela primeira vez na sua expressão real, pelo médico alemão Alois Alzheimer, em 1907, é uma doença ainda sem cura e resume-se num tipo de demência, a mais comum, que provoca uma deterioração global das diversas funções cognitivas. A pessoa que sofre desta doença perde memória, concentração, pensamento actualizado, linguagem, noções de alegria ou tristeza e outras funções como, por exemplo, as que têm a ver com a realidade diária, localização, funções vitais, por vezes a capacidade de andar, porque o cérebro não consegue transmitir essa ordem aos membros inferiores, equilíbrio e noção do que são as necessidades do ser humano.
A depressão também é um sintoma a ter em conta, acompanhada por desorientação e confusão, bem como de perda memória e aumento daquilo que, normalmente, se designa como esquecimento. 

(...)
As estatísticas informam que esta doença atinge pessoas de qualquer idade, mas é mais comum que surja após os 65 anos.
Parece não existir hereditariedade na doença de Alzhei­mer esporádica, com início tardio, mas é possível que algumas pessoas possam herdar uma maior ou menor possibilidade de desenvolver a doença, pelo que é recomendável acompanhar e prevenir os sintomas.
Os sinais mais comuns são: lapsos de memória; não encontrar as palavras certas para formar frases e exprimir ideias; praticar um discurso vago e deslocado da conveniência; manifestar falta de interesse pela prática de actividades outrora importantes e constantes; esquecimento de pessoas ou lugares; ….

    Os primeiros sinais

Tudo começa sem se dar por isso, sem se ligar muita importância, às vezes até com um sorriso nos lábios ou uma palavra de escárnio, de troça...
Há uma frase que não se diz. Há uma ideia que não se consegue transmitir. Há uma troca de expressões que ajudam a formar ideias de pouco sentido ou de nenhum sentido.
 «Oh, mãe, concentra-te! Pensa primeiro e, depois, diz.». Vera, tem calma. Não te precipites.» A filha fala assim. O marido também. Os de fora abanam a cabeça e, muitos deles riem de escárnio. Nas lojas, os empregados, principalmente as mulheres, começavam a divertir-se a sua custa, pela dificuldade que a Vera tinha em formar frases com sentido, dizendo realmente, aquilo que queria comprar.
Por isso entendo que a explicação devida a estas primeira manifestações, de que alguma coisa não está bem, pode ser a parte mais complicada deste livro. Porquê? Porque «o não estar bem» pode ter que ver com senilidade prematura, com a distracção, com falta de concentração, com o facto de a Vera não ler muitos jornais, nem se importar muito com livros... Não sei se é por aí que se deve analisar o que lhe aconteceu, mas fica como elemento de reflexão.
Talvez um restaurante simpático tivesse mais significado para ela. Mas essas eram questões que tinham que ver com o seu crescimento, com a sua formação, com os seus hábitos. Talvez a exposição pública estivesse mais de acordo com a sua maneira de ser. É difícil julgar. Talvez reminiscências do João Sebastião Bar, do endeusamento, de muitos homens a considerarem uma das mulheres mais bonitas de Lisboa.
Confesso que não sei, mas podia ter que ver um pouco com tudo isto, numa completa amalgama de sentidos e confusão de opiniões. A verdade é que a situação passou a ser repetitiva e, a partir daí, preocupante, embora lentamente preocupante. E este foi e é, para a Vera, o lado mais traiçoeiro da doença de Alzheimer, ou seja, não percebermos que havia necessidade de uma consulta medica urgente.
A Vera tinha pouco mais de 50 anos quando estes pequenos nadas se tornaram em manifestações de fazer sorrir, sem obrigar a pensar. À troca de palavras e às dificuldades em fazer-se compreender juntaram-se, a pouco e pouco, as situações de depressão, de revolta e de insensatez. E aí, sim, começou a valer a pena perguntar porquê.
Mas tudo isto foi muito lento, embora progressivo.
Exemplo: eu saía de casa para trabalhar. Voltava sempre, embora com algum sacrifício físico e pondo em causa a continuidade do meu trabalho, a horas de irmos os dois almoçar, porque eu percebia a importância que esse facto tinha para a Vera numa espécie de dependência afectiva. A Vera, muitas vezes não esperava por mim, porque não tinha capacidade para tanto, porque não sabia interpretar a espera, porque o tempo para ela, era diferente. Meia hora podia ser pouco mais de cinco minutos, ou podia ser o dia inteiro.
A Vera já não podia estar no mesmo lugar, na mesma cadeira, no sofá, a assistir a um debate, ou a uma sessão de trabalho na minha companhia, ou mesmo numa sessão solene (como acontecia nos seus tempos de saúde plena), durante muito tempo. Já não compreendia (absorvendo) o que se passava à sua volta, pelo menos para ter capacidade de esperar, de perceber, de avaliar as situações. Algumas vezes, chegava até a ser desagradável, inoportuna, inconveniente, mas sem perceber que o estava a ser. Na verdade, era igualmente impossível frequentar um teatro ou um cinema. Eu passava a ser o único culpado. Devia estar sempre presente, junto dela, sem mais ninguém, exactamente porque o seu tempo já era outro. Nada tinha que ver com o meu. Mesmo que eu chegasse escrupulosamente à hora combinada, ela já estava zangada.
Posso contar, entre outros episódios, que numa sessão solene fui com uns amigos e levei a Vera, que ficou na plateia, junto deles. Eu estava no palco, a moderar a sessão de esclarecimento e debate. A certa altura, a Vera começou a gritar por mim, do seu lugar. Não percebeu o que estava eu ali a fazer. Falou muito alto. Perturbou. Os assistentes não sabiam, interrogavam-se e mandavam-na calar.

    No dia dos seus anos
Os dias de festa já não são de festa. Temos consciência desta verdade. Estávamos a 20 de Setembro. A Vera completava 71 anos. Aos meus olhos, é como se fosse uma menina. A dimensão da minha vida só a mim diz respeito, e na minha vida cabe a Vera menina.
Não tinha bonecas. Não tinha bolo. Não tinha velas para apagar. Não tinha a família e alguns amigos reunidos a volta da mesa de aniversário, nem sequer podia fazer os camarões a baiana, que era o prato forte do dia, numa comemoração simultânea da festa da vida e da saudade da juventude passada no Brasil.
Ninguém iria ter a coragem de lhe cantar os «Parabéns a você», nem de dar uma dentadinha na vela do amor que se guarda junto ao peito daquele de quem mais se gosta. Também não faria sentido baterem palmas. E nem daríamos a volta a mesa para beijarmos a aniversariante.
Ali, na casa de saúde, prevalecem os números. Já sabíamos. Estávamos no piso 3, do quarto 313 e a Vera era a doente da cama 29!
Talvez só isto. Mas pode haver mais do que isto. Pode haver vontade de lutar. Pode haver esperança. Pode haver uma luz de olhar virada para o futuro do homem que há-de descobrir a cura para esta doença.
Naquele dia de Setembro havia saudade. Ela sentia-se.

 (…)

Uma das filhas levou um bolo. Acendemos uma pequena vela. As crianças cantaram. Algumas doentes também. Não sei se foi bonito. Mas sei que foi verdade. E, afinal, havia uma vela e havia cantares e havia parabéns.
A Vera dormia e os beijos foram trocados entre nós. As doentes gostaram da celebração e comeram um pouco do bolo.
Fui a um canto do tempo limpar uma lágrima. É bom quando se sabe porque se chora.

    À espera do futuro


Hoje é assim.
Estou a atravessar uma história de vida que ninguém sabe quando chega ao fim.
Nenhum de nós, ninguém na família deseja que chegue o fim, sempre agarrados à tábua da esperança que vagueia pelas ondas da fé e que se torna mais importante em cada dia que passa, talvez por sabermos que o tempo corre contra nós. Mas ainda bem que os dias alimentam a esperança de vida, enquanto não são capazes de garantir a esperança da cura.
A ansiedade, quando chegamos à casa de saúde, é o espelho da vontade que temos de perceber algo novo na doente, algum sinal de regressão na doença. Essa ténue esperança é, no fundo, o nosso alimento. Porque nenhum de nós encolhe os ombros ou se verga ao peso do que parece inevitável. A luta é pela sobrevivência, mas com dignidade.
Aquele elevador que nos conduz ao terceiro piso já cruzou muitas esperanças e anunciados desgostos e testemunhou actos de inconfessáveis e incontornáveis desesperos. Todos os dias se repete a cena, como se o caminho fosse novo e, lá em cima, descobríssemos a autenticidade do milagre não anunciado.
O ser humano tem a vantagem de acreditar, até no impossível. Essa é a crença da esperança que, no fundo, não deixa de ser uma virtude da vida. Por isso dizemos sempre que continuamos à espera do futuro, tentando não nos habituarmos à rotina diária da doença que nos toma até aos limites da nossa incompreensão.
É como se gritássemos, com a força da evidência, «não queremos mais!», mas insistimos em querer. Nesta dicotomia está a razão de prosseguirmos a caminhada na esperança de um futuro diferente: desejamos que haja um amanhã de luz e que aquele corpo definhado volte a ter os contornos que o fizeram desejado e apetecido, e que aqueles olhos mortiços voltem a ser faróis brilhantes, também eles a espalhar ternura e promessas.
A vida não pode ser assim tão má, tão sem sentido, tão desajustada dos nossos merecimentos e tão cruel. Daí o acreditarmos no futuro. Daí desejarmos o futuro. Daí desejarmos continuar a não dar tréguas a um mal que é impossível dominar neste momento, mas que um dia há-de transformar-se na virtude do homem que lhe descobriu a cura.

Guerra e Paz Ed.
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